Capítulos (1 de 7) 04 Jan, 2019
3 – Prometa-me que será minha
Lem chegou em casa cansada, e tentou seguir direto ao seu quarto, quando seu pai a chamou e pediu que se arrumasse para sair. Tinha de cumprir a promessa que havia feito contrariada a seu pai.
-Que bom. Como diria Murphy, tudo sempre pode piorar... - pensou ainda irritada.
Ela subiu para se trocar, e vestiu as roupas que seu pai havia lhe pedido para usar. Um vestido, cor de ébano, enfeitado com babados e rendas brancas. Era o tipo de coisa enfeitada demais, que não agradava muito à menina, embora combinasse muito bem com sua aparência delicada.
A família de Lem era rica o bastante para que se dessem ao luxo de ter vários carros. E naquele dia, parecia que Victor tentaria impressionar, pois escolhera um dos mais luxuosos que tinha ao seu dispor. E estava vestido também de uma forma ainda mais impecável que de costume.
-Ótimo. Parece que é minha deixa pra fingir ser a filha perfeita. Não sei o que me faria mais feliz... Acho que só trocaria isso por um monte de pingüins... -
Ao descer as escadas usando aquele vestido, os cabelos presos com fitas azuis, maquiagem, um perfume gostoso que Lem nem sabia o nome e sandálias negras brilhantes de tanto engraxar, fez com que todos na casa parassem para vê-la, como se fosse uma princesa indo a um baile. Uma princesa muito irritada e mal humorada que não gostava nem um pouco de toda aquela pompa...
-Ah se soubessem o que eu estou pensando... Não me achariam mais tão bonitinha... -
Sarah Specchio, a mãe de Lem, só observava de longe, e era talvez a única na sala que não demonstrava satisfação ao ver a menina. Sua expressão era algo diferente... Lem deduziu que parecia desaprovação, mas não podia dizer com certeza. Desde que se lembrava, Lem nunca conversou com ela sobre algo que não tivesse a ver com etiqueta. Nada além do necessário. Ela não conhecia a personalidade de sua mãe. Sabia que era vaidosa e orgulhosa.
- A mãe não vai conosco, pai?
- Não. É um assunto no qual ela não precisa estar presente para que seja resolvido.
Isso tranqüilizou um pouco Lem. Mesmo que achasse seu pai arrogante e autoritário, ele era mais fácil de lidar que a mãe. Sarah tinha o costume de depender de Victor para tudo, quando ela via Lem fazer algo de errado, nunca a repreendia, apenas esperava para contar a Victor para que ele se desse ao trabalho. Lem aprendeu a agir perfeitamente bem na frente dela, para não render nenhum comentário de desaprovação do pai depois.
Eles seguiram juntos até o carro que os esperava na entrada da casa. Lem entrou e se sentou sobre as pernas, no banco de trás do carro, e depois se debruçou sobre a janela. Victor entrou em seguida e se sentou de frente pra ela. Ela olhou pra ele de relance e ele fez um sinal com a cabeça para que ela se sentasse direito. Lem bufou, arrumou sua postura e fechou a cara. Victor fechou os olhos e deu um suspiro. Depois fez um sinal com a mão permitindo que Lem ficasse como achar melhor. Ela pôs os pés em cima do banco e se deitou com o rosto escorregando pelo vidro da janela. Victor apenas cobriu o rosto com uma mão e ficou quieto.
- O filho do conde Winter deve ter mais ou menos sua idade. Espero que vocês possam ser amigos. É bom manter boas relações com as pessoas com quem faremos negócios.
- Vou tentar conversar... – Mas na verdade eu ouvi falar que conversar é superestimado. Pra causar mesmo uma boa impressão eu devia só não conversar. Aliás, devíamos fazer isso agora mesmo... –
- Lem, preciso saber que você vai agir direito com ele. Isso é importante demais para ser estragado por qualquer motivo. – Lem quase podia dizer que seu pai parecia preocupado demais com uma simples visita de negócios. Mas ele levava tudo a sério demais, era difícil saber quando algo era mesmo sério. Lem apenas concordou acenando a cabeça. Victor não quis voltar a conversar depois disso. Após um tempo, chegaram na tal casa. Não era tão longe da casa de Lem, portanto o único motivo para irem de carro era mesmo causar uma boa impressão, deduziu Lem.
A entrada da casa impressionava. Era uma mansão muito parecida com a escola de Lem, havia um arco de madeira na entrada, e um caminho único e ladrilhado que levava até a varanda, onde haviam cadeiras de balanço e um pequeno sino de ouro ao lado da porta. Uma típica casa que mostrava que mesmo em uma cidade afastada e quase esquecida, havia resquícios de nobreza vinda de tempos passados. Victor bateu na porta, e logo um homem careca e de bigode, vestido em um terno muito bem passado e engomado, veio atender.
- Senhor Victor, bem-vindo. Entre por favor, o conde está esperando.
Disse o mordomo, que Lem imaginou se parecer com uma grande banana de bigodes.
-Nossa... Até me deu vontade de morder... Mas não deve ser muito nutritivo... -
- Por favor, esperem aqui. Fiquem à vontade enquanto vou chamar o conde Winter.
- Obrigado. – respondeu Victor em seu tom esnobe.
Lem aproveitou o tempo de espera para apreciar a decoração da casa. Ela realmente se parecia com a escola, o hall de entrada tinha uma grande escadaria que levava ao andar de cima, no lado esquerdo da escada algumas poltronas estavam organizadas em volta de uma mesinha. Do lado direito da escada, tinha mais uma poltrona, parecendo abandonada. Ao lado dela, uma porta de vidro que parecia levar à cozinha. Nas paredes, tinham vários quadros e estátuas, e alguns objetos que Lem não sabia direito o que eram. Um dos quadros se destacava dos outros, enquanto todos tinham imagens de paisagens como montanhas ou mares, nesse havia uma garota com asas de anjo, amarrada a uma árvore. Era uma pena ver que as asas tão grandes e bonitas estavam presas impedindo-a de voar. O que a prendia eram faixas vermelhas que também estavam enroladas por todo o corpo da figura.
-Asas amarradas, impedindo-a de voar e ser quem ela deve ser.... Poeticamente familiar. -
Lem imaginou que tipo de pessoa colocaria uma cena daquelas no hall de entrada, bem à vista para qualquer um que entrasse, mas quando o conde desceu as escadas, acompanhado de seu filho, Lem esqueceu-se do quadro.
Ao lado do senhor gordo que usava uma cartola e andava com uma bengala, estava um menino de cabelos prateados.
- Obrigado por vir, Victor. É bom saber que é pontual. - conde Winter gesticulava bastante, em oposição ao garoto do seu lado.
- Bons hábitos devem ser mantidos como tradição, não é? –respondeu Victor.
- Vejo que trouxe a companhia. É sua filha, imagino? – o homem gordo apontava para a garota que estava com cara de quem acabou de ver um fantasma.
- S-Sim, é a Lem... – Victor lançou um olhar acusatório para a filha, mas Lem ainda olhava para Shiree, surpresa pela coincidência. Ela não percebeu que o conde e seu pai a olhavam como se estivessem esperando alguma coisa.
- Ora, ela parece ser uma garota tímida. Não precisa se sentir nervosa com a nossa presença, senhorita. Ninguém aqui lhe fará mal algum. –Shiree disse em voz alta para Lem perceber que estavam falando com ela.
Só então que Lem percebeu que estavam esperando que ela se apresentasse para o conde e Shiree.
- Ah... S-sinto muito por minha falta de atenção, senhor conde... – Lem tentou se recompor para causar a melhor impressão que poderia - Sou Lem Specchio, é um prazer conhecer o senhor...
- Igualmente. – falou o conde enquanto se colocava atrás de seu filho e o empurrava pra frente pelos ombros – Esse é meu primogênito, Shiree.
- É um prazer senhor Specchio. – disse Shiree, que agia de modo completamente diferente de quando falou com Lem na escola. Agora estava sorrindo e parecia ser um garoto muito gentil da alta classe.
-Deve ser o tipo que trata pessoas abaixo dele de uma forma, e só age gentilmente quando sabe que é alguém importante. Ele é esnobe e falso... Não é nada do que imaginei que fosse... -
Shiree apertou a mão de Victor, então estendeu a mão para Lem. Ela retribuiu o cumprimento, ele a puxou para um pouco mais perto de si e colocou o dedo indicador na boca, em sinal de silêncio, de modo que só Lem viu o movimento. Ela percebeu que o gesto dele significava que ele não queria que ela falasse que eles já se conheciam, e resolveu cooperar. Não faria diferença alguma, afinal.
Após as apresentações, o conde Winter pediu para o mordomo com cara de banana trazer algumas bebidas para eles. Shiree recusou. Lem fez o mesmo. Então o conde voltou a falar.
- Victor venha comigo até meu escritório para resolvermos nossos assuntos. Enquanto isso, Shiree fará companhia para Lem. – o velho gordo pôs a mão no ombro de Victor e o levou para o segundo andar, em direção ao seu escritório.
- Ok, pai. – respondeu o menino.
Os dois homens e o mordomo saíram da sala, deixando Lem e Shiree a sós. Apesar de tudo, Lem preferia estar com ele a escutar a conversa do pai com o conde, pois acabaria caindo no sono. E também, aproveitaria para fazer mais perguntas para Shiree, e agora, tinha várias delas. Como não sabia por onde começar, ficou um tempo quieta, olhando os quadros. Ela percebe que Shiree assina alguns dos quadros. Ele pintou aqueles? Ele devia ser um grande artista... Porém, alguns não estavam assinados. Era perceptível que esses sem nome eram melhores. Eles retratavam flores muito bonitas, e paisagens como montanhas nevadas ou ilhas com várias árvores. O ângulo dessas cenas fazia parecer que você estava mesmo naquele lugar. Eles tinham vida. Os quadros de Shiree, embora bem pintados, pareciam não ter a mesma atmosfera e dose de profundidade daqueles outros. Lem gostou deles. Quando finalmente se decidiu do que iria perguntar, Shiree falou primeiro.
- O que achou da minha casa? Lembra um pouco sua escola né? Essa mansão era originalmente igual àquela, mas devido a alguns acontecimentos passados, algumas partes daquela casa foram reconstruídas. – A face de Shiree exibia ainda aquela expressão de bom menino.
- Sei. Então era verdade que aquela casa era propriedade da sua família.
- Não acreditou nisso?
- Quase nada do que você falou fez muito sentido. – Lem o atacou com o olhar, o que ele revidou com um pequeno sorriso - Que sorte te ver de novo. Agora posso te fazer umas perguntas...
- Sorte? Nem tudo nesse mundo pode ser considerado coincidência, sabia? – dizendo isso, seu rosto não demonstrava emoções.
-Ora, ora. Ele é bem evasivo... - Percebeu Lem.
- O que quer dizer com isso? Que estávamos destinados a nos ver de novo? Sinto muito, não acredito em destino.
- Ah, mas ele acredita em você. Afinal, você está aqui agora, não é?
- Como assim...? – Lem sentia que não conseguia acompanhar o raciocínio de Shiree, e relutou em ter que admitir isso pra si mesma.
- Bom, se você não quer acreditar em destino, devia primeiro ter a capacidade de entender o que acontece com você, e ter a força de mudar o que você não quer que aconteça.
- Sei. E o que eu não entendi? – Lem estava começando a perder a paciência com o jeito de Shiree de dizer a ela o que fazer.
- Você não devia procurar a força nos outros... – ele começou a andar em volta dela, devagar com as mãos nos bolsos. Sem realmente encará-la.
- E você não devia achar que sabe de tudo. – Lem estava tendo dificuldades em esconder a irritação.
- Só sei que nesse momento, você é minha boneca. – Ele parou apenas para lhe lançar um olhar penetrante e desconcertante.
- B-boneca? – Lem sentiu seu rosto corar com aquele olhar, mas não gostou de ser chamada assim.
- Sim. Logo será minha rainha, e depois um anjo. – A expressão de Shiree agora era de diversão. Ele desviou o olhar dela em direção aos quadros da casa.
- Do que você esta falando?
- Que não foi coincidência nos encontrarmos de novo, aqui em casa.
- Foi o destino então? – Lem se sentiu subitamente mais confortável agora que ele estava de costas.
- Pode se dizer que sim, no seu caso. A sua visita à minha casa hoje, já estava agendada há um tempo...
- Então você já sabia que eu vinha?
- Sim, e foi por isso que fui à sua escola hoje. Pra te ver.
- Hmm... E qual seu interesse em mim...? – Lem agora estava desconfiada.
- Conhecê-la, antes de tudo. Foi só pra confirmar se você era como eu imaginei. Fiquei feliz em saber que é. Agora que já acabou seu papel de boneca... – Ele se virou de novo em direção à garota, mexendo a mão no ar como se segurasse um boneco de cordas - ...Você está pronta para ser minha rainha.
- Não sou rainha de ninguém... – Lem estava brava com todo aquele papo. Só porque ele sabia que ela iria vir pra essa visita não lhe dava poder algum. E ir visitar ela na escola só pra ver como ela é? Isso já estava ficando assustador...
- Infelizmente, não disse que a escolha é sua.
Enquanto falava, Shiree foi até o quadro com o desenho do anjo, parou em frente dele e admirou-o por uns segundos. Virou-se então para Lem e respondeu-lhe a pergunta que já sabia que ela iria fazer.
- Você notou esse quadro aqui? Fui eu quem fez. Pode-se dizer que é, simbolicamente, um retrato seu. Pra ser mais preciso, é o modo como eu a vejo agora.
- Você me vê amarrada a uma árvore? Que tipos de pensamentos você tem comigo? – Lem cruzou os braços na frente do corpo e deu um passo pra trás.
- Não seja ridícula, só a vi hoje. Como poderia ter imaginado qualquer coisa com você? Esse quadro foi pintado há dois meses atrás...
- Então como essa sou eu se você não me conhecia? – Lem já não estava mais preocupada em entender Shiree. Concluíra que ele era só um louco e pensava só em quando iria embora e poderia esquecer tudo daquele dia e nunca mais vê-lo.
- Chegamos exatamente onde pretendia chegar. Esta mulher que pintei aqui está amarrada pela sua própria afeição. É graças a ela, que permanece atada ao chão, fadada a olhar o céu e imaginar como era a sensação de quando podia voar. Agora me diga, você pode imaginar um modo pra ela voar novamente?
Lem já havia pensado na resposta, mas demorou pra se decidir se devia ou não responder.
- Ela... precisa se livrar das faixas que a estão prendendo. Mas se as faixas são sua afeição, talvez ela não queira livrar-se delas... E é por isso que está presa – respondeu Lem.
- Sim, está certa. E você ressaltou algo interessante. O fato de ela não querer se livrar da sua prisão. Eu diria que ela é adulta. Ela percebeu que tem algo errado com sua situação presente, mas a aceita, e sabe que mudá-la só trará mais sofrimento.
- Pra você, ser adulto é aceitar os problemas e assumir ser incapaz de mudar sua própria vida?
- Ser adulto é saber seus limites. Confuso, eu sei. Mas às vezes a gente acaba se perdendo no nosso próprio mundo...
- Que besteira. – Lem revirou os olhos com um sorrisinho sarcástico.
- Você diz isso porque ainda é criança. Não consegue nem saber que tem algo de errado com o mundo ao redor.
Lem riu consigo mesma. - Tem razão... Talvez não tenha algo errado com o mundo. Talvez só exista algo de errado em mim. Talvez o mundo esteja certo e eu errada. Ou talvez quem esteja certa sou eu. Isso não importa. Confuso, ele diz... Eu entendo como é se perder no próprio mundo, mas gosto disso. Prefiro estar no meu mundo. E não importa a impressão que “ele” tem de mim. Já estou cheia por hoje. Apenas quero voltar pra casa e ficar sozinha com o que importa pra mim. Embora, sinceramente, nem sei mais o que é que me importa... -
- O que foi? – perguntou Shiree – você acha que estou errado sobre você? Então me diga. Nesse momento, você está se sentindo desconfortável, e está pensando que quer ir logo embora daqui, não é?
- Porque acha isso? – é, obviamente você tá certo... - Ela teria concordado, mas não queria admitir isso pra ele.
- É por isso que disse que sua visão do mundo é a de uma criança. Mas não se preocupe. Você não é a única. E logo, sei que será capaz de crescer, e ampliar sua visão. – Shiree fechou a cara e se pôs a caminhar, com um ar esnobe.
Lem naquele momento só percebeu que havia algo errado com ele. Afinal sua expressão mudava a cada palavra. Hora se divertia, hora parecia furioso, hora agia como um digno senhor de alta classe... Ela não sabia qual daquelas faces era a real. Isso se é que uma delas era real. Mas lá no fundo ela admitia que ele parecia muito inteligente. E que apesar de ter péssimas habilidades sociais, já não o achava mais tão ruim. Poderia se acostumar com a estranheza dele. Ela se acostumou com Duo e Lilly... E de certa forma, seu modo de pensar era até mais próximo ao de Lem que o dos dois.
- Legal saber que tem esperanças em mim... – Lem usou um tom sarcástico e foi até a poltrona que estava sozinha no lado da escada.
Antes que ela pudesse se sentar, o mordomo voltou à sala, anunciando que o conde Winter, e Victor requisitavam a presença dos dois no escritório dele no segundo andar. Shiree foi na frente, e Lem não conseguiu ver sua expressão. Ela mesma seguiu logo atrás, sem se apressar. Quase no fim do corredor, Shiree parou de frente à uma das portas e aguardou que o mordomo banana passasse por ele. Os dois esperaram Lem chegar. Ela ficou parada à alguns passos da porta. Os dois ficaram olhando ela como se esperassem algo. Ela revirou os olhos e se colocou ao lado do garoto de cabelos brancos para que o mordomo finalmente abrisse a porta.
O escritório era uma sala quase do mesmo tamanho que as salas de aula da escola de Lem, mas com a mesma decoração requintada da sala de estar, cheia de quadros de paisagens (sem nenhum quadro estranho dessa vez), e uma estátua de uma ave com as asas abertas perto da mesa do conde.
Lem e Shiree se sentaram nas lindas cadeiras que mais pareciam outro enfeite daquela sala, então o conde, sentado em sua cadeira grande e ornada, com Victor de pé ao seu lado, deu-lhes a notícia que explicava o motivo de Lem ter acompanhado o pai nessa visita.
- Senhorita Lem... – começou o conde com o mesmo ar esnobe de Victor – Shiree, meu filho... Eu e Victor anunciamos que a partir de agora, vocês são noivos.