Capítulos (2 de 7) 01 Oct, 2019

6 – Métodos sujos

4 anos atrás.

A névoa e o clima frio anunciavam outro dia. Eu sabia. Já havia sentido eles muitas vezes. E havia me incomodado em todas elas. Não tinha nenhuma aversão ao frio, mas não gostava nada da sensibilidade, da fragilidade e da dor que ele causava. Minha mãe costumava me cobrir nas noites muito frias. Ela sempre vinha até meu quarto, que era um tanto distante do dela e de meu pai. Por pedido dele, eu acho. Ela costumava me trazer uma coberta extra, e às vezes alguma bebida quente feita por ela mesma. Meu pai sempre a repreendeu por fazer isso. Ele não aceitava que minha mãe, como uma nobre, sujasse suas mãos fazendo algo na cozinha. Era serviço dos empregados. Eu gostava de receber essa atenção extra, mas com o tempo, disse pra minha mãe não fazer isso novamente. Não depois de ver que ela sempre discutia com meu pai por causa disso.

Agora o frio da manhã não incomoda tanto quanto naquela época, mas trazia as lembranças. Levanto-me de minha cama finalmente para cumprir minhas tarefas. Afinal sou um bom filho, não sou? Sou a pessoa que meu pai esforçou-se pra que eu me tornasse. Somente alguém que cuida do que é dele com a desculpa de que um dia será meu. Vou até meu grande guarda-roupa, e pego alguma coisa que pode ser considerada elegante o bastante pra ele. Do espelho da porta do meu armário, vejo a mim mesmo. Alto pra minha idade, cabelos prateados despenteados e profundos olhos dourados. A parte que eu mais gosto de mim. A herança mais preciosa que guardei de minha mãe. Os dela, no entanto, não eram tão opacos. Porque a foto da minha cabeceira parecia que tinha olhos mais vivos que os meus? Os olhos são afinal, a janela da alma não são? Os meus mostram a minha com muita clareza. Opaca.

Enfim pronto, saio de meu quarto já emoldurando no rosto uma expressão que não demonstre o que eu sinto realmente. Isso não é um grande problema. Acho que tenho um certo dom para esconder meus sentimentos. Mesmo de mim, às vezes.

Temos uma rotina em casa, e durante o período da manhã, tomar café junto do meu pai era a prioridade. A casa era grande, e pra mim, muito enjoativa. Eu tinha que andar quase por toda a casa para chegar até a sala do café. A decoração do meu pai era monótona. Apenas alguns quadros e estatuas caras ao longo dos corredores. Nada bonito de se ver, apenas coisas de alto custo. Lixo pra mim.

A casa costumava ser movimentada pela manhã. Os empregados acordavam antes para preparar tudo. Caminho lentamente até chegar frente à porta da sala de café da manhã. Estava distraído em pensamentos. Talvez por isso eu não tivesse percebido antes, mas a casa estava quieta. Incomum.

Por um momento, esqueci-me do que estava pensando. A sala do café tinha grandes janelas de vidro que mostravam o jardim na frente de casa. Idéia da minha mãe. Havia um lustre cheio de pequenas lâmpadas e uma mesa longa com seis cadeiras de madeira polida e ornamentada. Enfeites como quadros e obras de arte adornavam a parede antigamente. Agora só havia marcas brancas nos lugares que estavam os quadros. Não havia ninguém ali hoje. Teria eu acordado mais tarde? Que inconveniente.

Fechei novamente a porta sem nem ao menos entrar na sala, e voltei-me para o corredor. A segunda parada de meu pai durante a manhã era seu escritório. Ele deveria estar cuidando de seus negócios. A coisa que mais lhe importava. Empurrei-me meio contra a vontade para lá. Teria que cuidar de seus negócios por mais um dia...

O escritório era o segundo maior cômodo da casa. Ele costumava ser o quarto da minha mãe. Empurrei a maçaneta e entrei dizendo “bom dia”, para anunciar minha chegada. Mas ele também não estava lá. A sala estava vazia de vida. Apenas alguns papéis jogados pelo chão e na mesa de centro. Os documentos dos negócios do meu pai. Estranho. Não me recordava de nenhuma ocasião na qual ele não viera trabalhar. Sentei-me em sua mesa, e um a um, organizei os documentos jogados por nome e importância. Já estava quase acabando quando algo caiu de um montinho de papéis que iria guardar numa gaveta. Uma anotação feita à mão.

Sullivan

Não se esqueça.

Era a letra do meu pai. Quem era Sullivan? Talvez apenas uma família com negócios a tratar com o meu pai. Mas eu estranhei o fato dele escrever essa nota à mão. Ele costumava lembrar-se de todos seus negócios sem precisar fazer anotações. Mas isso ele anotou. Ele não anotou só para não se esquecer. Era algo a mais. Era importante. Não devia ser um simples negócio. Sullivan. Eu conhecia esse nome. Onde eu o havia ouvido? Deixei o escritório em direção à biblioteca. Eu pensava melhor lá. Era o lugar da casa que tinha a menor movimentação. Era calmo.

Andei um pouco ao lado das três primeiras filas de estantes coloridas pelas capas dos vários livros que meu pai possuía. Mero enfeite, na maior parte. A luz do sol começava a invadir a biblioteca, deixando no chão o formato das grades das janelas. O quarto no todo tinha a forma de um retângulo, com três colunas de três estantes. Havia um espaço um pouco vago entre as colunas e a parede leste, onde tinha uma mesa com apenas uma cadeira. A luz do sol deixava o quarto com uma aparência alegre, embora o clima da casa raramente fosse tal. Sullivan. Esse nome estava em algum lugar da minha memória, mas não conseguia me lembrar onde. Parecia que eu não conseguia chegar nesse lugar da minha mente. Como num sonho, sempre que eu tentava lembrar-me, ele parecia sumir. Como areia que se esvai entre os dedos.

Porque meu pai tinha uma anotação sobre a família Sullivan? Será que ele precisava de alguma informação que só esse homem sabia? Eu estava tão absorvido em pensamentos, que quando levantei a cabeça em direção à janela, o sol já estava quase no meio do céu. Ninguém tinha aparecido ainda, nem os empregados nem meu pai. Levantei-me e fui até o jardim da casa. Ele estava há muito abandonado. Meu pai não dava ordens aos empregados para cuidar do jardim, e apenas minha mãe o mantinha saudável. Agora as plantas estavam na maior parte secas, crescendo para qualquer lado. Decidi aproveitar meu tempo livre para cuidar do jardim. Voltei ao meu quarto, vesti uma roupa mais velha e fui até o quartinho de ferramentas no fundo do terreno. Ele me assustava um pouco quando eu era pequeno, pois mesmo durante os dias claros, ou com a luz acesa, ele era muito escuro. Minha mãe fez um buraco no teto para deixar a luz entrar. Quando meu pai viu, ele o tapou novamente. Notei que não entrava ali há algum tempo. Quantas coisas eu deixei de fazer desde a morte da minha mãe? Eu peguei tudo que achava necessário para o jardim e levei pra fora. Reguei as plantas vivas, arranquei as mortas e replantei sementes. Quando acabei, já era quase a hora do pôr do sol. Ninguém ainda estava em casa. Guardei as ferramentas no quartinho e voltei para dentro de casa. Silêncio. Fui novamente até o escritório do meu pai, mas dessa vez, não fiquei arrumando seus documentos. Apenas sentei ao lado da janela, onde me sentava ocasionalmente quando ficava conversando com a minha mãe. Havia algo errado. Meu pai não saía assim, e não dispensava os empregados. Estava distraído, por isso me assustei quando ouvi um grito no primeiro andar da casa. Havia alguém aqui?

Desci o mais rápido que pude, sem fazer barulho algum, e fui na direção do barulho. Ouvi uma batida na parede, e mais gritos. Parecia que estavam discutindo. Duas pessoas, e mesmo alterada pelos gritos, reconheci uma das vozes como a do meu pai. Cheguei mais perto do quarto de onde as vozes vieram, mas elas estavam mais longe agora. Abri a porta sem fazer barulho e olhei pela fresta. A sala estava vazia. Era o quarto de um empregado? Meu pai estava brigando com algum empregado? E se eles não passaram por mim, por onde eles poderiam ter saído? Entrei no quarto e comecei a analisá-lo. Alguns objetos pessoais estavam jogados no chão. Fotos, um relógio, algumas roupas, e um vaso quebrado. Sob a mesinha ao lado da cabeceira da cama, um objeto chamou um pouco minha atenção. Uma adaga, com a empunhadura trabalhada. Será que a discussão estava séria o bastante pra que alguém tivesse usado aquela arma? O resto do quarto não tinha mais nada de suspeito. Uma estante com gavetas meio abertas, um guarda-roupas, alguns livros empilhados num canto do cômodo.

Eu ouvi um estalo atrás de mim, e sem pensar duas vezes, rolei pra baixo da cama. Uma porta se abriu, mas eu não via onde. Me surpreendi quando vi um velho meio careca, baixo, com uma expressão cansada e dura saindo de dentro do guarda-roupas. Ele parou e pareceu esperar alguém. Logo depois, outro homem saiu de dentro do guarda-roupa. Um tanto gordo. Meu pai...? Eu ouvi um barulho de porta se fechando quando ele saiu. Eles olharam um para o outro por um tempo. Meu pai estava com o colarinho aberto, e as roupas amassadas e largadas. Ele tinha também um pequeno ferimento na sobrancelha esquerda. O outro homem parecia estar com alguns hematomas também. De onde eu podia ver, tinha uma mancha roxa grande no seu braço direito, e ele estava segurando este braço como se estivesse doendo. Eles brigaram mesmo? Meu pai arrumou um pouco as roupas e fez um sinal para a porta do quarto.

- Vamos subir. Venha até o meu escritório. Não deve ter ninguém em casa além do Shiree, e ele deve estar ocupado, não vai atrapalhar. – meu pai disse num tom diferente. Ele não estava gesticulando como de costume, e ele nunca usou esse tom perto de mim. Parecia preocupado.

- Espero mesmo que possamos resolver isso, Ciere. Não quero mais ter que me incomodar com esse assunto... Eu deixei tudo para trás.

Eles deviam se conhecer a algum tempo, ninguém chamava meu pai pelo primeiro nome. Mas do que eles estavam falando? Esperei pacientemente até que eles saíssem do quarto e eu pudesse ouvi-los subindo as escadas. Já estavam longe, então eu saí de baixo da cama, e bati um pouco nas minhas roupas para tirar o pó e uma pequena aranha, cuja teia eu provavelmente teria estragado.

Fui direto até o guarda-roupa de onde eles saíram. Havia alguma porta ali dentro, mas onde ela daria? Eu não fazia idéia que essa casa tinha esses tipos de coisas. Abri as portas do guarda-roupa e pus a cabeça para dentro para examinar. As roupas ali cheiravam mal, mas por trás delas tinha um gancho que eu imaginei ser a maçaneta da porta. Eu o puxei, e uma pequena corrente caiu do lado de trás da porta. Ela abriu. Estava muito escuro ali. Eu entrei e fechei a porta do guarda-roupa por dentro. Então encostei a porta secreta e procurei uma parede para tatear. Fui seguindo pelo que parecia um pequeno quarto, e meus olhos começaram a se acostumar com o escuro. Agora ele até parecia um pouco iluminado. Tinha um pequeno buraco no teto que deduzi, dava no jardim. Com a pequena luz, eu conseguia ver algumas coisas. Havia dois castiçais pendurados na parede dos dois lados do quarto, e fora isso, o quarto era vazio. Não havia nenhum móvel nele também. Fui olhar de perto um castiçal quando percebi algo. O chão tinha uma diferença no canto noroeste. Era oco. Abaixei-me para examinar e percebi um buraco no chão por onde poderia se levantar um pedaço do piso. Um alçapão. Para onde ele levava? Meu pai e aquele homem estavam escondendo algo aqui? Levantei-o até cair do outro lado no chão. Dentro dele havia uma escada que levava para baixo. Lá dentro eu não podia ver nada. Sem saber pra onde estava indo, entrei no alçapão. Um degrau de cada vez. Não tinha reparado até então, mas estava suando um pouco. Fui tateando a parede até acabarem os degraus. Era só um quartinho pequeno. Eu podia sentir a parede na minha frente e aos meus lados. Encostada na parede havia uma pequena mesa e uma cadeira. Me aproximei pra olhar mais de perto e tropecei em algo. Um caderno. Era grosso e parecia velho. Eu o peguei e subi as escadas para poder ler. Era escrito à mão. Fui pra baixo do pequeno buraco no teto para ter toda a luz que pudesse conseguir. Abri na primeira página. Havia uma inscrição feita com uma tinta diferente do resto das páginas.

Diário de Bartholomeu Winter

..........................................................................................................

Hoje.

Abro os olhos, mas ainda está escuro. Meu quarto parecia que não conseguia mais se iluminar. A foto da minha mãe na minha cabeceira estava virada para baixo. Não queria ver seus olhos por enquanto. Levantei da cama e me vesti. Hoje tudo que eu fiz começaria a fazer sentido. Todas as peças estavam chegando a seus lugares. Saio do meu quarto e vou para o escritório do meu pai, como sempre. Ele estava revendo os documentos para o meu casamento com Lem. Ele parecia imerso em seus papéis, então não o cumprimentei. Passei reto pela mesa dele e peguei uma mala prateada que estava encostada num canto da sala.

- Vai sair Shiree? – meu pai perguntou sem se virar. Ele já sabia que eu costumava pegar minha mala ali quando ia sair para fazer algum trabalho dele.

- Hoje tenho uma reunião com os Noah. Marquei há alguns dias. Ele estava vendendo um território que eu acho que nós poderíamos usar, pai. Você sabe onde é. Aquele campo florido perto da antiga escola. – meu pai estremeceu levemente ao ouvir sobre aquele lugar. Eu sabia o porquê. Mas pra ele, eu era apenas uma criança ignorante.

- Não tem nada lá além de flores e árvores Shiree. – Ele olhou pra mim com um tom de desaprovação forçado. Acho que pretendia fazer com que eu perdesse o interesse... - O que vamos fazer com aquele lugar? Se eu quisesse comprar um terreno vazio para construção, procuraria algum que tivesse no mínimo uma melhor localização.

- Aquele terreno é grande, e tem ligação com o mar. Eu estava pensando em aproveitar isso. O senhor tem aquele barco que conseguiu do senhor Dallaluna, lembra-se?

- Você vai comprar aquele lugar pra fazer um cais? Não vejo muita utilidade, mas você sabe o que está fazendo não é? – ele voltou a atenção aos seus papéis e abanou as mãos para mim, como que pedindo pra que saísse. Acho que ele concluiu que não havia perigo nenhum em me deixar cuidar daquele lugar– Você está se tornando um homem Shiree. Mas deve continuar estudando os passos dos que caminharam à sua frente.

Caminhei lentamente até a porta, ficando de costas para meu pai. Lembrei-me de ter lido aquela mesma frase que ele disse no diário do Bartholomeu. Seguir os passos de quem ia à minha frente só me traria ruína. Mas eu sabia a resposta que Bartholomeu usaria nesse momento. Abri a porta e dei um passo para fora.

- Ora pai. Eu mantenho os bons hábitos como tradição, certo? – fechei a porta sem me virar. Toquei minha face com a mão aberta. Eu estava rindo. 

Compartilhar:

© 2024 Zinnes. Todos os direitos reservados.

Feito com ❤ por BYCODE AI